domingo, 28 de novembro de 2010

domingo, 14 de novembro de 2010

A Posse

Eu, meu marido e minha filha, vivíamos num dos melhores bairros de Recife, tínhamos uma livraria e uma vida muito confortável.
Adorava morar lá, os vizinhos eram educados. Eu e meu marido tínhamos vários amigos, diferente da minha filha que nunca a via com ninguém, imaginava que ela poderia ser muito tímida para fazer amizades. Por isso me esforçava para que ela encontrasse nos livros a alegria de quem amigos, mas não adiantava, ela não estava nem ai para os livros, preferia jogos eletrônicos e doces, muitos doces.
Houve um tempo que eu estranhei o comportamento de Gloria, todas as tardes ficava na sala de casa, como se esperasse por alguém, e esperava, porque todas as tardes a campainha tocava e ela ia até a porta, mas não demorava e voltava para sala com um sorriso de satisfação.
Certa vez, perguntei, a Gloria quem era a pessoa que ela recebia todas as tardes, e porque aquele momento a deixava tão feliz, ela nada disse, e eu já esperava por essa reação, ela era uma criança fechada. Como mãe, eu me preocupava, talvez por sentir culpa, por ela ser assim.
Numa tarde decidir, descobrir o motivo das visitas vespertinas que eram feitas para minha filha. Esperei a campainha tocar e logo em seguida apareci. A visitante, constante era uma menina de corpo magro e cabelos lisos, parecia muito triste e cansada, perguntei qual era o motivo das visitas, elas ficaram caladas por algum tempo e, em seguida, tentaram falar, cada uma com suas versões.
O motivo das visitas daquela garotinha era a promessa a que Gloria fizera, de emprestar “As Reinações de Narizinho”, de Monteiro Lobato, empréstimo que não havia sido feito, pelo fato de minha filha sentir prazer em ver aquela menina se humilhando todas às tardes.
Vi que aquela vitima de Gloria gostava muito de ler, afinal aquela persistência era uma prova do gosto que ela tinha pelos livros. Gloria nem tinha tocado, ela era tão cruel que eu nem havia percebido. Minha filha não tinha amigos, porque era cruel e soberba.
Não havia opção melhor que tentar conserta o erro dela. Decidir entregar o livro a aquela garota, dizendo que ficasse o tempo que quisesse, era uma forma de reparar a humilhação que aquela menina sofreu, e castigar Gloria, entregando aquele livro que era a arma de tortura que ela usava contra a colega.
Aquela garota saiu com o livro contra o peito, muito tímida, e seguiu andando como se levasse um vaso de cristal. O livro parecia frágil nas mãos daquela menina, fiquei ali parada, vendo ela ir pela rua, feliz e satisfeita.


Texto de: Silvana Dantas, Rebeca Fucs, Luana Fiquene

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Felicidade Clandestina

Por Marcos W. Oliveira e Rangel Querino

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Gorda, baixa, sardenta e de cabelos crespos, assim era Zefinha. Não surpreendia o seu desafeto pela leitura, não porque era feia, mas porque era má. Pois leitura é coisa de gente doce, e de doce só tinha as balas no bolso da blusa por cima do busto, o que a deixava ainda mais corcunda e desengonçada.

Porém, o seu pai era dono de livraria, quase uma qualidade, pois várias meninas de sua idade, amantes da leitura, sonhariam com essa realidade. Era fácil citar uma delas, como Laura, que morando num sobradinho no outro lado da rua, sentia um imenso prazer em ler. Diferente de Zefinha ela tinha uns cabelos de milho, daqueles bem loirinhos que voavam ao vento pelas ruas de Recife. Imensa era a sua doçura, quase açúcar. Mas havia ainda um pedaço de si faltando, tal inexistência era representada pelo desejo de ter “As Reinações de Narizinho”, livro de Monteiro Lobato.

Outro dia na escola, quase torturando, Zefinha revelou a todos - inclusive a Laura - que tinha em mãos, bem guardado e sem ler, o tal livro desejado. Laura sem titubear ousou e o pediu emprestado, foi algo assim: “pá-pum”. E obedecendo ao tempo mínimo pra resposta, Zefinha disse sim. Era quase indescritível a face de Laura justamente por comportar um reflexo de felicidade e grande esperança, portanto logo marcou de pegar a sua então alegria no dia seguinte.

Laura acordou bem cedo, só escovou os dentes porque era necessário. Ela pisava leve. Ela estava leve. Muito sorrateiramente, bateu na porta de Zefinha, e sem nem respirar, cobrou a dívida que lhe tinha feito. A garota má, quase amarga, sentiu-se doce ao dizer não e justificar a ausência do livro, disse-lhe que havia emprestado pouco antes de sua chegada. A face de Laura se viu no chão, era tão cabisbaixa sua aparência de volta à casa. Mas isso só fez com que começasse o ciclo de visitas diárias.

Sempre no mesmo horário e batendo três vezes na porta, Laura aparecia diariamente na casa de Zefinha. Mas num desses dias, a mãe daquela garota perversa surpreendeu as duas ao abrir a porta, certamente intrigada com a aparição diária de Laura a sua casa. Quis saber o que sucedia. Laura tomou a fala e explicou toda a situação, seu timbre de voz caracterizava a aflição. Dona Clarice, mão de Zefinha, sentiu-se desapontada com a filha e como castigo, não por isso apenas, mas também pela determinação de Laura, resolveu emprestar o livro, e disse-lhe que poderia ficar em seu domínio por quanto tempo fosse necessário.

Laura voltou para casa abraçada com o livro e novamente os seus cabelos voavam. Adiava a leitura, para sempre ter páginas para devorar. “Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.”