segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Felicidade Clandestina

Por Marcos W. Oliveira e Rangel Querino

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Gorda, baixa, sardenta e de cabelos crespos, assim era Zefinha. Não surpreendia o seu desafeto pela leitura, não porque era feia, mas porque era má. Pois leitura é coisa de gente doce, e de doce só tinha as balas no bolso da blusa por cima do busto, o que a deixava ainda mais corcunda e desengonçada.

Porém, o seu pai era dono de livraria, quase uma qualidade, pois várias meninas de sua idade, amantes da leitura, sonhariam com essa realidade. Era fácil citar uma delas, como Laura, que morando num sobradinho no outro lado da rua, sentia um imenso prazer em ler. Diferente de Zefinha ela tinha uns cabelos de milho, daqueles bem loirinhos que voavam ao vento pelas ruas de Recife. Imensa era a sua doçura, quase açúcar. Mas havia ainda um pedaço de si faltando, tal inexistência era representada pelo desejo de ter “As Reinações de Narizinho”, livro de Monteiro Lobato.

Outro dia na escola, quase torturando, Zefinha revelou a todos - inclusive a Laura - que tinha em mãos, bem guardado e sem ler, o tal livro desejado. Laura sem titubear ousou e o pediu emprestado, foi algo assim: “pá-pum”. E obedecendo ao tempo mínimo pra resposta, Zefinha disse sim. Era quase indescritível a face de Laura justamente por comportar um reflexo de felicidade e grande esperança, portanto logo marcou de pegar a sua então alegria no dia seguinte.

Laura acordou bem cedo, só escovou os dentes porque era necessário. Ela pisava leve. Ela estava leve. Muito sorrateiramente, bateu na porta de Zefinha, e sem nem respirar, cobrou a dívida que lhe tinha feito. A garota má, quase amarga, sentiu-se doce ao dizer não e justificar a ausência do livro, disse-lhe que havia emprestado pouco antes de sua chegada. A face de Laura se viu no chão, era tão cabisbaixa sua aparência de volta à casa. Mas isso só fez com que começasse o ciclo de visitas diárias.

Sempre no mesmo horário e batendo três vezes na porta, Laura aparecia diariamente na casa de Zefinha. Mas num desses dias, a mãe daquela garota perversa surpreendeu as duas ao abrir a porta, certamente intrigada com a aparição diária de Laura a sua casa. Quis saber o que sucedia. Laura tomou a fala e explicou toda a situação, seu timbre de voz caracterizava a aflição. Dona Clarice, mão de Zefinha, sentiu-se desapontada com a filha e como castigo, não por isso apenas, mas também pela determinação de Laura, resolveu emprestar o livro, e disse-lhe que poderia ficar em seu domínio por quanto tempo fosse necessário.

Laura voltou para casa abraçada com o livro e novamente os seus cabelos voavam. Adiava a leitura, para sempre ter páginas para devorar. “Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.”

Um comentário:

  1. Estou adorando essas reescritas de Felicidade Clandestina... uma melhor que a outra

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